Megatendências / Incremento da Governança e dos Riscos

Diversificação e interdependência entre fontes de riscos

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Entre 2000 e 2018, vimos o crescimento de 50% da produção das culturas primárias (FAO, 2020). No período de 1990 a 2020, presenciamos o avanço da produção de biocombustíveis em escala global passar do patamar equivalente a 80 Terawatts/hora (TWh) para 660 TWh (British Petroleum, 2021). Nesse processo de ampliação da atividade agropecuária, novas fontes e categorias de riscos, ameaças e externalidades surgiram e continuarão não só a emergir, mas também a conectar-se entre si.

O Economic Research Service (ERS), vinculado ao United States Department of Agriculture (Usda), nos traz um bom exemplo dessa ampliação das fontes dos riscos ao trabalhar com cinco tipos de riscos. São eles: produção, mercado, financeiro, institucional e humano (United States, 2021). A União Europeia (European Commission, 2017) traz entendimento semelhante ao do ERS em relação à categorização dos riscos, com uma interessante agregação: a possibilidade de leitura do risco a partir do ponto de vista judicial (detalhes na seção Risco Judicial).

Nessa mesma linha, a Embrapa, conforme Arias et al. (2015), organiza a gestão dos riscos agropecuários em três grupos, os quais, por sua vez, consideram oito dimensões: eventos climáticos e incêndios; sanidade animal; sanidade vegetal; gestão da propriedade e de recursos naturais; crédito e comercialização; comércio exterior; logística e infraestrutura; e marco regulatório, políticas, instituições e grupos de interesse.

Outro fator que ganha força para impulsionar a mudança do foco da percepção do risco relacionado ao agro é o aumento de zoonoses. Entre 1940 e 2004, 60% das doenças infecciosas emergentes tiveram origem animal, e 70% delas originaram-se da vida selvagem (Jones et al., 2008). Essa pressão já existe no contexto há alguns anos, como bem registra o International Food Policy Research Institute (2015), e a consultoria IHS reforça, ao mostrar que muitas dessas doenças podem usar a pecuária como sua hospedeira conectora ou amplificadora (Benefits..., 2021). 

Isso tudo nos mostra que o tradicional foco dos riscos agropecuários (1) na redução da variabilidade da receita e mitigação dos efeitos de incertezas relacionadas ao clima e surtos de doenças (Wedekin, 2019; Glauber et al., 2021) e (2) na agricultura, com atenção para o complexo ciclo das safras (Motamed et al., 2018; Duong et al., 2019), está em processo avançado de diversificação.

Ademais, reforçam esse processo evidências de diversas áreas mostrando que nas próximas décadas teremos que lidar não só com o que representa ameaça ao agro, mas também com externalidades do agro que podem ter impactos críticos para a sociedade e os ecossistemas. 
Algumas dessas evidências são os perigos relacionados ao eventual esgotamento de solos em razão de sistemas intensivos de produção (Global Panel on Agriculture and Food Systems for Nutrition, 2020), de monoculturas extensivas que podem interferir na biodiversidade e na dinâmica dos polinizadores (Global Panel on Agriculture and Food Systems for Nutrition, 2020), de consequências da diminuição da biodiversidade (World Economic Forum, 2020), da proximidade entre as taxas de erosão e formação de solo (Benefits..., 2021) e do fato de 26% da emissões globais de gases de efeito estufa estarem relacionadas com a produção de alimentos (Ritchie, 2019). 

Na prática, em um agro pressionado tanto pelo aumento da demanda por alimentos, fibras e biocombustíveis como pela busca de interações saudáveis com os ecossistemas (National Research Council, 2010) impõe-se a necessidade de buscar a construção de modelos de desenvolvimento sustentáveis considerando características e limites dos recursos naturais, juntamente com as tradicionais preocupações com produtividade. 

Para desempenhar essa missão, conhecer essas características e limites será fundamental. Isso demandará esforços abrangentes na captação de dados e geração de informações confiáveis que permitirão o monitoramento e a modelagem de riscos, inclusive em apoio a esforços como o de consolidação do conjunto de padrões e boas práticas conhecidas pelo acrônimo ESG (do inglês, environmental, social and governance) no agro. 

Assim, viabiliza-se a criação de ferramentas para enfrentar riscos, ameaças e externalidades de forma mais holística, contribuindo para o crescimento sustentável do agro e do fortalecimento da sua reputação junto à sociedade. 

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Risco Judicial

O caso da disputa judicial envolvendo o uso do glifosato nos EUA Produzido, por definição, no ambiente dos tribunais de justiça, o risco judicial emerge como resultado dos procedimentos próprios desse ambiente e se desenvolve segundo o tipo de racionalização que é própria das disputas aí travadas. Se confirmadas nas sucessivas instâncias, os riscos produzidos nos julgamentos iniciais ganham magnitude e iminência de consumação sob a forma de obrigações impostas à parte perdedora. Isto é, aumenta a probabilidade de o risco, inicialmente um perigo, tornar-se dano. Dependendo de quais são as partes envolvidas na disputa, o resultado dos julgamentos pode impactar diretamente o sistema regulatório, que costuma ser governamental, ou pode impactar as disposições de agentes não governamentais, eventualmente repercutindo em mudanças regulatórias. Da mesma forma, decisão judicial proferida em país periférico do agro internacional dificilmente extrapola sua jurisdição. Já a decisão proferida em um país como os Estados Unidos pode extrapolar sua jurisdição de origem, seja ela federal ou estadual. Caso concreto de risco judicial, em que o perigo inicial tem avançado para a condição de dano produzido sobre – e de mudança de rumo adotada por – importante player do agro internacional é o do glifosato. A primeira condenação de seu principal produtor, a Monsanto, sob alegação de a substância e os herbicidas com ela formulados serem carcinogênicos para humanos, deu-se em tribunal de primeira instância da justiça estadual da Califórnia, EUA, em 2018. A decisão tanto atribuiu culpa quanto dolo à conduta da empresa. (Cavalcanti, 2018, 2020). O primeiro impacto se deu no valor de mercado da Bayer, que adquirira a Monsanto pouco antes e se tornara sua sucessora legal. Julgamentos subsequentes, tanto em primeira instância quanto em cortes de apelação, produziram resultados na mesma direção, do que resultou forte depreciação do valor de mercado da Bayer. (Cavalcanti, 2018, 2020). Os acionistas da empresa forçaram os dirigentes a mudar suas disposições, tanto em relação às disputas judiciais quanto em relação ao próprio desenvolvimento do mercado de herbicidas. (Baumann, 2019; Bayer, 2019a, 2019b; Cavalcanti, 2020). Entre as mudanças estão a decisão de investir 5 bilhões de euros no desenvolvimento de soluções tecnológicas alternativas ou mesmo sucedâneas dos herbicidas à base de glifosato no período 2019–2028 (Bayer, 2019b). Há indicações de que os primeiros resultados desse investimento podem ser anunciados em 2024 (Storbeck, 2021). Outra mudança é a disposição da Bayer de obter, junto à Agência de Proteção Ambiental dos EUA, autorização para mudar o rótulo de seus produtos à base de glifosato, incluindo advertências e orientações sobre cuidados, para a saúde, na manipulação desses herbicidas. Até então, tanto aquela agência quanto a empresa lutava – inclusive na esfera judicial – contra a obrigatoriedade de promover esse tipo de aviso no rótulo dos produtos. (Bayer, 2021a, 2021b; Cavalcanti, 2020). Após consultar seus parceiros na cadeia de valor de herbicidas no mercado norte-americano, a companhia anunciou o encerramento da venda de herbicidas formulados à base de glifosato para o mercado de jardins e gramados domésticos no início de 2023. (Bayer, 2021c). Se a empresa for bem-sucedida em seu programa de P&D, abre-se a perspectiva de, nos próximos anos, a partir de 2024–2025, começar a ser lançada no mercado nova geração de herbicidas e de materiais geneticamente modificados (GMs), em mútua convergência tecnológica. Esse novo cenário emergente poderia levar à caducidade das cultivares GMs que têm, entre as características sustentadoras de sua prevalência comercial nas cadeias de soja, milho, algodão e canola, a resistência ao glifosato. Dada a escala global de prevalência das tecnologias de modificação genética – que estão associadas ao emprego do glifosato – os impactos do risco judicial que, nesse caso, emerge nos EUA, pode propagar-se para outros territórios jurisdicionais, sem exclusão do Brasil. (Cavalcanti, 2018).

 

Referências